sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

Termos usados pelos deputados no impeachment de Dilma

 Todas as emissoras de televisão brasileiras (bem, exceto uma) passaram as últimas doze horas exibindo ao vivo a sessão em que cada um dos deputados federais brasileiros se manifestou acerca do prosseguimento do processo de impeachment de Dilma Rousseff. As mais de 500 justificativas de votos foram uma verdadeira amostra do que é o português brasileiro contemporâneo real.


Eis uma pequena amostra de termos usados hoje por nossos deputados:


“essa ladroeira toda“: parece errado, mas o deputado estava certíssimo: a palavra “ladroeira” de fato existe – e, como mostra o dicionário Priberam, é de fato um sinônimo de ladroagem e de ladroíce, que significam roubo, extorsão;

“é um sacripanta“: o deputado acertou; sacripanta (cujos significados são patife, indigno ou falso beato) não tem “s” no singular; a variante “um sacripantas“, que por vezes se ouve, está incorreta;

“em nome da indústria fumageira“: para a surpresa de muitos, o adjetivo fumageiro existe: como ensina o Michaelis, fumageiro e fumageira são de fato adjetivos referentes à produção do fumo;

“um dia paroxístico“:  podia parecer criação de deputado, mas não, a palavra está correta: paroxístico é o que apresenta paroxismos – que, por sua vez, são o ápice, o auge de algo, ou uma crise

“pelegagem“: condição, estado ou comportamento típico de quem é pelego – que, como ensina o Michaelis e outros, é como se chama no Brasil aos sindicalistas que disfarçadamente trabalham contra os interesses dos demais sindicalizados, em favor do patrão ou do governo – e, por extensão, é termo usado para se referir a todo aquele que é servil aos poderosos;

“presidenta” e “membra“: parece incrível, mas, em 2016, ainda tem quem nos pergunte se existe mesmo a palavra “presidenta” – correto feminino de presidente, como ensinam o Michaelis, o Aurélio, o Houaiss, o professor Pasquale, o Priberam, a FLiP, etc., e que está devidamente registrado em dicionários portugueses desde pelo menos o ano de 1812. Mais aceitável é que ainda nos perguntem se a forma “membra”, mais recente, usada hoje pelo presidente da Câmara dos Deputados, está correta – e a resposta é que também essa está, como se pode ver no Priberam ou no Dicionário Houaiss;

“os deputados indecisos têm sido tietados“: como ensina os dicionários, tietar é verbo que se usa só no Brasil, onde significa “ser puxa-saco”, “demonstrar ostensivamente admiração incondicional”;

“seria fácil tergiversar“: outrora um termo culto e de uso relativamente raro, o verbo “tergiversar” caiu nas graças dos políticos brasileiros, que agora a usam todo o tempo em substituição do popular “enrolar“: usar de desculpas para fugir de um assunto;

“é um processo inecsorável“: por soar chique, muita gente adora usar a palavra “inexorável”, que significa “rígido”, “implacável”, etc. O que muitos não sabem é que, na pronúncia padrão, o “x” de inexorável tem em português som de /z/, como em exame, e não som de /cs/, como em táxi. Escreve-se, sim, inexorável, mas a pronúncia recomendada pelos dicionários é inezorável, e não inecsorável;

“o que nós vimos onte“: há quem ache que “onte” é um erro de português, mas a verdade é que “onte” (assim mesmo, sem o “m”) está nos dicionários (vide o Houaiss, o dicionário Aulete, o dicionário Priberam, etc.) como forma histórica do advérbio ontem, usada e registrada desde o século XIII, ainda viva regionalmente;

“eu não vou conivir com isso“: o suposto verbo “conivir” foi o caso que mais me chamou a atenção, por ser a única das palavras aqui listadas que oficialmente não “existe” – isto é, não está nos dicionários. Ou melhor, está em um: o Dicionário inFormal, feito com contribuições diretas dos usuários. O interessante é notar que a lógica da deputada, e de todas as (aparentemente muitas) pessoas que usam a palavra, faz sentido: se existe o adjetivo “conivente“, o “lógico” seria existir um verbo do qual viesse a palavra. O raciocínio é perfeito – a língua portuguesa é que não o é; como toda língua natural e imperfeita, apenas o adjetivo do latim adaptou-se ao português; o verbo latino, do qual o adjetivo se originara, não entrou em nossa língua. Mas, a continuar o processo de sua “invenção” (ou “ressurreição” – ou, melhor ainda, “reencarnação”) forçada, é provável que num futuro tenhamos oficialmente um verbo para “ser conivente” na língua portuguesa.

A lógica é puramente a lógica da língua portuguesa: via de regra, os adjetivos portugueses em “nte” vêm-nos de verbos: crente, de crer, doente, de doer; ouvinte, de ouvir, pedinte, de pedir; presidente, de presidir; atuante, de atuar; agente, de agir; temente, de temer; existente, de existir; seguinte, de seguir; falante, de falar; dependente, de depender; consistente, de consistir.

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