Aqui em Minas Gerais, a Rede Mineira de Viação (RMV) administrou boa parte das ferrovias, de 1931 a 1965. Nas viagens de trem, os mineiros brincavam “RMV: Ruim, Mas Vai”. Também em Minas, vi outros significados alternativos de siglas como a do departamento em que eu trabalho na UFV. DBG significa Departamento de Biologia Geral, mas alguns o chamam de Departamento dos Bichos-Grilos 🤷♂️.
Pelas ruas, eu via afixadas nos postes umas plaquinhas de propaganda duma empresa de Fisioterapia: “Conheça nossos serviços UAI-SO” (Unidade de Atendimento Integrado – Saúde Orientada). Numa cidade mineira, não haveria nome mais criativo.
Essas releituras de RMV, DBG e ‘uai, sô’ são exemplos de retroacrônimos, isto é, significados criados a partir de siglas ou palavras pré-existentes. É a criatividade à serviço do entretenimento e da comunicação.
O problema é quando retroacrônimos aparecem como explicações etimológicas de algumas palavras. Infelizmente, essas pseudoetimologias aparecem aos montes espalhadas pelas redes sociais. Apresento algumas aqui:
👁🗨 Skol: O nome da marca de cerveja, de propriedade duma empresa dinamarquesa, vem do sueco ‘skål’, que significa copo. É um termo utilizado nos brindes dos países nórdicos equivalente ao nosso ‘saúde!’. A lenda é que o nome seria uma homenagem a Sarah Kubitschek de Oliveira, primeira-dama do Brasil de 1956 a 1961. Outra cerveja que já ouvi um retroacrônimo foi Brahma, que significaria “Bebam, Rapazes! Amanhã, Haverá Mais Ainda” além de outras versões impublicáveis, rsrs.
👁🗨 cadáver: Muitos já me mandaram publicações em que cadáver é explicado como vindo do latim ‘cadaver’, um acrônimo de ‘caro data vermibus’ (carne dada aos vermes). Cadáver vem mesmo de ‘cadaver’, mas significando ‘corpo caído, morto’, vindo do verbo ‘cadere’ (cair, perecer), que deu origem ao substantivo queda e ao adjetivo cadente. Essa é uma pseudoetimologia antiga, encontrada em livros da Idade Média (!) e em aulas de Anatomia.
👁🗨 larápio: Um larápio é um ladrão. Contam que na Antiga Roma, havia um juiz corrupto de nome Lucius Antonius Rufus Appius que assinava suas sentenças compradas como L.A.R.Appius. Essa pseudo-história ficou tão famosa que chega a aparecer em vários dicionários. O fato é que o termo larápio é um dos inúmeros vocábulos que os etimologistas não fazem a mínima ideia de onde e como surgiram. Só sabemos que o primeiro registro de ‘larápio’ é de 1812.
👁🗨 ‘fuck’: A famosa pseudoetimologia diz que o verbo inglês ‘to fuck’ viria de ‘Fornication Under Consent of King’ (Formicação Sob o Consentimento do Rei). Dizem que na Inglaterra, houve um tempo em que os ingleses só poderiam ter filhos se tivessem permissão do rei. Os casais autorizados, então, penduravam uma placa na frente da casa com a sigla F.U.C.K. Como tem gente que acredita nessa bobagem, não demorou a aparecer a versão portuguesa. Como em Portugal, a taxa de natalidade estaria baixa, o rei teria baixado uma lei em que as pessoas eram obrigadas a copular. Eita! Por isso, foda teria vindo de ‘Fornicação Obrigatória por Despacho Administrativo’. Quem fosse solteiro ou viúvo, precisava ter na porta as palavras: 'Processo Unilateral de Normalização Hormonal por Estimulação Temporária Autoinduzida', que deu origem à palavra punheta. Essas palavras são primitivas, não vieram de siglas. 😲
👁🗨 uai: Muito ouvi dizer que a expressão ‘uai’ foi passada aos mineiros pelos ingleses que vieram trabalhar nas ferrovias do Brasil. Eles diziam ‘why, sir?’ e os mineiros transformaram em ‘uai, sô’. Balela! Outra explicação fantasiosa afirma que uai era um código secreto dos participantes da Inconfidência Mineira, que significaria União, Amor e Independência. Conversa fiada! Uai vem de Unidade de Atendimento Integrado. Ela também foi parar em nomes científicos. Os pesquisadores já usaram para nomear novas espécies.
Seguindo a lógica, o Subway é Sub-uai, o iFood é uai-fude, o iPhone é uai-fone, a internet sem fio é uai fai.
👁🗨 ‘S.O.S.’: O mundo todo conhece o sinal S.O.S. para pedir socorro em navios. O significado ‘save our souls’ (salvem nossas almas, em inglês) só apareceu depois do código SOS ter sido criado no código Morse. É que SOS corresponde aos sinais ▪▪▪ ▬ ▬ ▬ ▪▪▪, que são mais fáceis de transmitir e memorizar na Telegrafia. Em outros lugares, cunharam a expressão ‘save our sailors’ (marinheiros) ou ‘ship’ (navio), mostrando como a história disseminada é confusa.
👁🗨 ‘OK’: em 2010, o professor Allan Metcalf lançou um livro inteiro só para explicar a etimologia de ‘OK’, que, segundo ele, é a palavra mais falada e digitada no mundo. Em 1839, o ‘OK’ surgiu num artigo humorístico do jornal ‘Boston Morning Post’, como uma abreviatura de ‘oll korrect’. Era uma contradição lógica, pois a expressão estava escrito errada, mas significava ‘tudo certo’. O candidato Martin van Burien, que concorreu às eleições de 1840, empregou o OK, ajudando a espalhar a sigla. No Brasil, porém, popularizou-se uma história de que, na Guerra da Secessão (1861–1865), as tropas que voltavam sem baixas colocavam na porta do alojamento um aviso escrito ‘0K’, uma abreviação de ‘0 killed’ (zero mortos). Então, com zero virando O, ‘OK’ seria uma maneira de dizer ‘está tudo bem’. Essa história curiosa é só mais uma das 18 versões (!) etimológicas para ‘OK’ que o Metcalf apresentou no livro.
É claro que as pseudoetimologias são mais instigantes que a verdade etimológica de muitas palavras. É por isso são tão disseminadas. O ideal é termos sempre cuidado com as fontes para não cair numa lorota (Lenda Ordinária Retardada Oposta à Teoria Aceita).
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