domingo, 22 de outubro de 2023

Argentina vai às urnas hoje para eleger novo presidente; saiba o que está em jogo

Os eleitores argentinos votam no primeiro turno das eleições presidenciais neste domingo (22). A votação deve marcar um novo momento do país, com uma reconfiguração das principais forças políticas da Argentina.

Segundo Federico Zapata, diretor da consultoria Escenarios, a organização política atual da Argentina teve início em 2003, com a eleição de Nestor Kirchner, e deve ser alterada agora porque nenhum dos candidatos, nem mesmo o que representa o governismo, defende o continuísmo. "É o fechamento de uma época que teve uma série de pilares econômicos, culturais e políticos, e o que está em votação é a forma como vai acabar essa época, se isso será de uma forma mais ou menos radical", afirma ele.

Além disso, também está em jogo o que deverá acontecer com a economia do país nos próximos 10 ou 15 anos, de acordo com a cientista política Maria Esperanza Casullo, professora da Universidad Nacional de Río Negro.

Em agosto, houve as primárias, que são obrigatórias para todas as coligações. Um dos objetivos dessa votação é tirar do pleito os candidatos nanicos e manter só os que realmente têm chances. Além disso, as primárias são consideradas uma espécie de ensaio para o que deve acontecer no primeiro turno. O resultado deste ano foi quase um empate triplo:

    Javier Milei, deputado federal de extrema direita, em primeiro, com 29,86%;
    A coligação de Patricia Bullrich, ex-ministra de Segurança de Macri, em segundo com 28%;
    A frente política de Sergio Massa, o atual ministro da Economia, em terceiro com 27,27% (leia os perfis dos três candidatos mais abaixo).

Os resultados das primárias não foram previstos pelas pesquisas eleitorais. O jornal espanhol "El País" fez uma compilação das pesquisas para o primeiro turno A maioria das pesquisas aponta que Milei deve ficar em primeiro, mas há muita variação -- entre as 10 últimas, 7 apontam que Milei fica em primeiro lugar, e 3 dizem que é Massa. A tendência é que a eleição vá para o segundo turno.

O que está em jogo

    A reconfiguração das forças políticas

Desde 2003, a política argentina é dividida entre apoiadores e adversários de uma vertente de esquerda do peronismo (ou seja, herdeiros políticos de Juan Domingo Perón, que foi presidente da Argentina três vezes durante o século 20).

Em 2003, o país elegeu o esquerdista Nestor Kirchner. A mulher dele, Cristina, venceu as duas eleições seguintes. O kirchnerismo é considerado a corrente dominante do peronismo nos últimos 20 anos.

Neste período, as eleições presidenciais foram marcadas por disputas entre um kirchnerista e um opositor, geralmente ligado à direita mais tradicional. Um único presidente de direita foi eleito, Maurício Macri, que governou entre 2015 e 2019.

Em 2023 a escolha não é entre um candidato kirchnerista versus um antikirchnerista porque há três candidatos com chances reais de serem eleitos:

    O candidato ligado aos Kirchner é Sergio Massa;
    Patricia Bullrich é a candidata da direita tradicional;
    Javier Milei representa uma nova força política.

O kirchnerismo está enfraquecido a ponto ter sido obrigado a aceitar Sergio Massa como seu candidato --Massa já foi adversário dos Kirchner (em 2015, ele concorreu à presidência como um peronista não kirchenrista). Carlos Pagni, um dos principais analistas políticos da Argentina, afirma que Massa é o que há de mais ortodoxo no atual grupo que está no governo. Em sua campanha, ele apareceu poucas vezes com Cristina.

Milei é contra todos os políticos tradicionais, inclusive os não kirchneristas -- ele faz campanha política justamente em cima disso, ao chamar todos os adversários de "casta" (um de seus slogans diz que "a casta tem medo").

Segundo a professora Maria Esperanza Casullo, a presença de Milei também marca a entrada em cena de um populista de direita que se diz "outsider", no estilo de Donald Trump (Estados Unidos), Jair Bolsonaro (Brasil) e Nayib Bukkele (El Salvador).

Além disso, ele é caricato: ele diz que não penteia os cabelos (um de seus apelidos é Peruca e, também por causa do penteado, uma "juba", ele usa a imagem de um leão em sua campanha) e já deu diversas declarações chamativas sobre questões privadas.

A inflação descontrolada

Nos últimos 12 meses, o IPC, o índice de preços oficial, teve alta de 138%. A inflação corroeu o poder de compra dos argentinos e, hoje, há um consenso de que uma forma de tentar combater o problema é reduzindo o tamanho do Estado. Isso porque uma das causas da inflação é a emissão de moedas.

O governo emite moeda para se financiar, e isso aumenta a quantidade de pesos na economia de uma forma tão intensa que o câmbio perde valor.

Há um certo consenso entre os candidatos que é preciso diminuir o tamanho do Estado, mas os três divergem na intensidade e na forma desse corte. "O programa de Massa seria um ajuda mais gradual com resguardos para os programas sociais. Milei fala em diminuir o Estado em cerca de 15% do PIB e provavelmente sem pensar nas consequências sociais", diz Casullo.

De acordo com Federico Zapata, da consultoria Escenarios, Patricia Bullrich tem uma proposta intermediária, mas ela afirma que a candidatura dela tem a racionalidade técnica e que uma gestão dela teria governabilidade para fazer reformas que Milei não conseguiria.

A dolarização

A moeda americana é usada na Argentina --por exemplo, é comum que compra e venda de imóveis e pagamento de aluguel sejam operações em dólares em papel. Sem dólares, esses mercados ficam travados.

O problema é que faltam dólares na Argentina. O país tem poucas reservas internacionais de dinheiro porque ficou anos fora do mercado de emissão de dívida nacional e, por causa de uma seca severa, as exportações caíram muito.

O governo tem restringido o acesso a dólares (essas medidas de restrição são chamadas de "cepo").

Milei, o candidato de extrema direita, já afirmou que pretende dolarizar a economia, mas não colocou isso no plano de governo dele.

Segundo Casullo, a professora da Universidad Nacional de Río Negro, Milei fala da dolarização com uma ambiguidade estratégica, porque ele nunca se expressa claramente, e os assessores já deram sinais contrários ao plano. "Ele nunca diz como essa dolarização aconteceria, qual seria o valor de referência ou os prazos da mudança, e esses sinais confusos permitem que a dolarização seja uma promessa, mas, ao mesmo tempo, se não ocorrer em um eventual governo dele, ele possa negar que tenha se comprometido com a dolarização", diz ela.

Patricia Bullrich, a candidata da direita tradicional, já afirmou que o plano de dolarizar a economia é inviável.

A violência

O tema da violência é um dos mais importantes das eleições. Nos últimos anos houve alguns episódios chamativos de violência, especialmente na cidade de Rosário, onde há disputas pelo controle de tráfico de drogas, e na região metropolitana de Buenos Aires, onde houve uma onda de saques a lojas.

Bullrich, a candidata da direita tradicional, já foi ministra da Segurança, e afirma que vai implementar uma política de pouca tolerância e encarceramento em massa para lidar com o tema (em um dos seus vídeos de campanha, ela apresentou uma maquete de uma mega-prisão; no fim, aparece uma placa da maquete onde se lê que o nome da instituição seria "Cristina Kirchner").

A candidatura de Milei aborda o tema de duas formas. Uma delas é a proposta do próprio Milei de facilitar o acesso às armas.

Conheça os candidatos e saiba o que eles propõem

    O anarcocapitalista dos programas de TV

Javier Milei já afirmou que o Papa Francisco é um “esquerdista asqueroso”, que a moeda argentina não deveria valer “nem excremento”, que ele considera que a venda de órgãos humanos deveria ser um mercado como os outros e que, para ele, o Estado é um inimigo, e os impostos são um entrave para a liberdade”. O candidato diz frases chamativas com frequência porque foi assim que ele ficou famoso no país. Antes de ser político, Milei foi goleiro das categorias de base do clube Chacarita, cantou em uma banda de rock chamada Everest (eles faziam covers dos Rolling Stones) e estudou economia.

Depois de cursar a faculdade de economia e fazer uma pós, Milei trabalhou como professor universitário e deu consultoria para empresas. Segundo um perfil publicado na revista “Anfibia”, a partir do começo da década de 2010, ele passou a se interessar mais por teóricos ligados ao libertarismo. Ele já disse que é anarcocapitalista, mas que, por ora, como uma sociedade sem Estado é impraticável, contenta-se em ser minarquista –ou seja, adepto da ideologia de que o Estado se ocupe só de segurança e Justiça.

No fim da década passada, começou a participar de programas de rádio e, depois, de mesas redondas de política na TV argentina. Ele conseguiu fama como o convidado “politicamente incorreto” que falava alto e eventualmente xingava os outros. Algumas de suas frases famosas foram ditas nesses programas de debates em que os convidados tentam chamar a atenção: ele afirmou que é professor de sexo tântrico e que conversava com o espírito de seu cachorro.

Durante a pandemia de coronavírus, Milei participou de manifestações contra a quarentena. Então, em julho de 2021, ele fundou seu partido, o A Liberdade Avança, e se candidato a deputado federal pela cidade de Buenos Aires. A votação foi uma surpresa. A coligação dele teve 17% dos votos na Cidade de Buenos, uma porcentagem que ninguém esperava. Foi uma votação surpreendente para uma força política recém-formada.

Ele não teve destaque como deputado e, então, se lançou como candidato a presidente.

Antes da votação nas primárias, as pesquisas apontavam que a chapa de Milei deveria ficar em terceiro lugar. Ele novamente foi uma surpresa nas votações, a frente dele terminou em primeiro, com 29,86% dos votos, e tornou-se o grande assunto das eleições deste ano.

Na campanha ele fez eventos que juntaram multidões e empregou slogans fáceis de lembrar, como “a casta tem medo” e “viva a liberdade, caralho”.

    Propostas de Milei

Milei tem levado uma motosserra para seus atos de campanha. É uma metáfora para uma das suas principais bandeiras eleitorais, a diminuição do tamanho do Estado. Ele afirma que conseguiria uma redução equivalente a 15% do PIB argentino. Ele diz que vai reduzir o número de ministérios de 18 para 8. Acabariam, por exemplo, os ministérios de Cultura, de Ciência e de Meio Ambiente (em seu discurso Milei diz que o aquecimento global não é causado pela atividade humana).

Ele também já afirmou que pretende tirar fundos do Conicet, uma autarquia que financia pesquisa científica na Argentina.

Ele afirma ainda que vai acabar com o Banco Central.

Apesar de ele ter repetido diversas vezes que pretende dolarizar a economia, esse tema não apareceu no programa.

Ele promete reforma do setor elétrico, abertura comercial radical e privatizações de empresas com a YPF (petróleo) e Aerolíneas Argentinas.

Ele já afirmou também que, como é católico, é contrário à lei que descriminalizou o aborto no país e que tentaria revertê-la.

    A candidata da lei e ordem

Patricia Bullrich, a candidata da direita tradicional nestas eleições presidenciais, começou a carreira política no campo ideológico oposto: durante a última ditadura militar do país, no fim dos anos 1970, ela foi do grupo de militantes de esquerda Montoneros. Ao longo dos anos, Bullrich, filha de uma família rica e tradicional da Argentina, foi se deslocando para a direita. Ela foi ministra do Trabalho e da Segurança Social do governo de Fernando de la Rua, uma gestão que se desintegrou com uma grave crise econômica em 2001.

Anos mais tarde, Bullrich aliou-se a um político em ascensão que havia sido presidente do clube de futebol Boca Juniors e fundado o próprio partido, o Proposta Republicana (ou Pro): Maurício Macri. Nas eleições presidenciais de 2015, Macri, que já tinha sido prefeito da cidade de Buenos Aires, conseguiu tirar os peronistas do governo da Argentina e levou Bullrich para o Ministério da Segurança. Ela adotou uma postura de linha dura contra o crime, que é parte de seu discurso político até hoje.

Macri se candidatou à reeleição, mas perdeu para Alberto Fernández. Agora, ele resolveu ficar de fora das eleições, e a direita tradicional teve uma disputa entre dois aliados: Bullrich ou o prefeito de Buenos Aires, Horacio Larreta. Ela venceu, mas desde então sua candidatura ficou sem rumo por um adversário de uma outra coligação.

Na Argentina, todas as coligações são obrigadas a fazer prévias, mesmo que haja um único candidato. Ao chegar no local de votação, o eleitor escolhe em qual coligação vai votar. Dentro de sua própria coligação, Bullrich foi vencedora, mas quem ficou em primeiro lugar foi Javier Milei, um político de extrema direita que lançou seu próprio partido e que surpreendeu nas prévias. Desde então, Bullrich não teve bons momentos na campanha. Milei recebeu muito mais atenção do que ela.

Patricia ataca o candidato da extrema direita dizendo que as ideias dele são perigosas e ruins: “Nem mesmo a equipe dele acredita em suas ideias. Não dá para dolarizar a economia sem dólares, para levar a Argentina para frente é preciso trabalhar com ideias claras”, disse ela em seu evento de encerramento de campanha.

    Propostas de Patricia Bullrich

Em seu plano econômico ela afirma que vai buscar zerar o déficit fiscal, dar autonomia ao Banco Central e adotar uma política cambial na qual tanto o peso como o dólar iriam valer.
Reforma trabalhista.

Mudar os regimes de penas para menores de idade que cometem crimes e alterar a idade em que as pessoas são consideradas imputáveis.

Criar uma prisão de segurança máxima com o nome de Cristina Kirchner.

Alterar as regras dos contrato dos funcionários públicos para igualar o estatuto ao regime dos empregados da iniciativa privada.

Diminuir o número de ministérios pela metade e reduzir a quantidade de cargos políticos.

    O centrista da esquerda

Sergio Massa começou a vida política em um partido conservador, a UCeDé. Na época, o peronismo (corrente política ligada ao ex-presidente Juan Domingo Perón) vivia uma fase de direita. A UCeDé era da base do governo, e Massa acabou migrando para o peronismo. Ele foi eleito deputado federal em 1999, e, pela primeira vez, ficou no Legislativo até ser nomeado para um cargo no governo federal –dessa vez, foi para o órgão responsável pelas aposentadorias na Argentina; anos mais tarde, seria o Ministério da Economia.

Massa tornou-se um aliado do presidente Nestor Kirchner e permaneceu no cargo até o governo de Cristina, quando ele tornou-se chefe de gabinete da nova presidente. No entanto os dois brigaram, e Massa tentou se afastar do kirchnerista e se apresentar como um peronismo independente --foi assim que ele se apresentou nas eleições presidenciais de 2015, quando perdeu para Maurício Macri.]

Em 2019, Massa e Cristina voltaram a se aproximar. A esquerda fez uma grande aliança naquele ano: Alberto Fernández foi eleito presidente com Cristina Kirchner como vice, e Massa foi eleito deputado. Ele foi escolhido como presidente da Câmara dos Deputados até julho de 2022 --com dificuldade para conter a inflação, o governo decidiu nomear Massa como ministro da Economia. Ele ainda está no cargo, mesmo sendo, ao mesmo tempo, candidato à presidência.

Apesar de ser ligado historicamente aos Kirchner, ele é considerado um centrista.

    Propostas de Massa

Sergio Massa é o candidato do governo (a frente política chama-se União pela Pátria). Ele tem uma série de propostas sociais: recuperar o poder aquisitivo das famílias, passar a distribuir remédios de forma gratuita, incluir alguns direitos nas leis trabalhistas e criar uma política para mitigar as emissões de gases do efeito estufa e poluentes das indústrias de óleo e gás e mineradora.

Na campanha, ele afirmou que a ideia é tentar fortalecer as exportações, que garantem entrada de dólares. Isso permitira ao governo estabilizar a moeda argentina, o peso.

Ele propõe fazer mudanças que impliquem economia de recursos. Por exemplo, fazer com que os programas de assistência social sejam associados a uma qualificação para o emprego formal e também uma reforma tributária para simplificar a arrecadação.

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